Por Júlia Rhaine com edição de Alessandra Ribeiro
O congado é uma das manifestações culturais mais tradicionais de Minas Gerais. Além da presença dos foliões, é comum a figura de um boi como o enunciador da festa. Mas, em uma cidade no interior do Oeste mineiro, o boi mais do que desfila: ele ataca!
Animado, o jovem Natan Moisés, de 19 anos, mostra como o município de Oliveira, onde nasceu e cresceu, se organiza para a abertura das festividades. “Todo mundo pulando, gritando, chamando ‘eh boi’, provocando o bicho, até que o boi simplesmente começa a correr atrás de nós”. Moisés esclarece uma questão que pode martelar a cabeça de muitos: “Claro, não é um boi de verdade, é uma pessoa vestida de boi que corre atrás de nós”, explica o estudante da área de Recursos Humanos.
Não se sabe ao certo quando começou a tradição em Oliveira, atualmente com 40.552 habitantes. Porém, é certo que, em todos os anos, no primeiro sábado do mês de setembro, às sete e meia da noite, o Boi do Rosário sai da Casa dos Congadeiros em direção às principais ruas da cidade. As pessoas começam a se aglomerar em volta do boi repetindo o tradicional refrão "Êh, Boi!, Êh Boi”. Quando, de repente, os percussionistas, que rodeiam a figura tocando as caixas, mudam o louvor por um rufado e o boi dispara sobre o público, a visão é de correria, giros, pinotes e cabeçadas. Logo tudo para e a percussão retoma a batida padrão e a marcha pelas ruas. Passa de meia-noite até que todo o trajeto seja percorrido.
A tradição faz parte da vida de muitos jovens em Oliveira, como explica a estudante Bianca Carvalho, de 19 anos, natural da cidade. “Quando eu era mais nova, minha mãe levava a gente lá no Boi”, lembra. Ela faz parte do mesmo grupo de amigos que Moisés, e todo ano sai de Lavras, no Sul de Minas, onde estuda agronomia, para acompanhar a festa. “A gente sempre está lá, batendo ponto todo ano”, diz.
O congado é um dos mais belos acontecimentos do ano em Oliveira. Os cinco mastros dos santos padroeiros da Festa do Rosário –Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora das Mercês, Nossa Senhora Aparecida, São Benedito e Santa Efigênia – são erguidos na Praça XV de Novembro, a principal da cidade, um mês antes do início da festa. Um dia antes dos cortejos caminharem pelas ruas, o Boi do Rosário caminha acompanhado pela multidão. É que antes do rádio, da televisão e muito antes da internet, era o boi que anunciava o começo da festa.
É como se o boi fizesse uma abertura espiritual e energética das vias públicas, tudo no campo simbólico da fé. O tabelião João Paulo Siqueira, um dos rapazes que se reveza para caminhar como o animal, explica o significado da simbologia do boi. “É para limpar as ruas de todos os pensamentos negativos, começar de forma positiva, para fazer uma festa feliz, e anunciar que o congado vai começar”. No giro pelas ruas centrais, o Boi do Rosário passa pela Igreja Matriz Nossa Senhora de Oliveira e, na lateral da praça, o boi saúda lentamente cada um dos cinco mastros.
Embora todo o evento pareça, de certa forma, bagunçado, é cuidadosamente organizado por toda a equipe congadeira, que todos os anos se dedica a fazer uma roupagem diferente que cobre o balaio, a estrutura do boi, onde a pessoa vai controlá-lo de dentro, e também onde está fixada a cabeça do animal, uma cabeça de boi de verdade com uma imagem de Nossa Senhora do Rosário na testa. “O boi é como se fosse um santo em movimento”, compara Siqueira. Mesmo com toda essa correria, ele não pode ser tocado, e não abaixa a cabeça para ninguém-- apenas para reis do congo, princesas e capitães no palanque, na praça principal da cidade, na noite do evento.
O boi que mostra os caminhos da tradição e da amizade
No Brasil, o Congado é hoje uma festa religiosa popular realizada do Ceará ao Rio Grande do Sul, assumindo características regionais. Estudos indicam que, antigamente, o Congado reunia os negros escravizados para a chegada do rei Congo. A festa era uma reação contra as ações e atitudes dos europeus brancos e cristãos que de tudo faziam para lhes impor a sua religião e visão de mundo. Proibidos de cultuar seus orixás, os congados foram a maneira encontrada pelos afrodescendentes, que obrigados, adotam símbolos cristãos, para recriar suas tradições nesta terra. Atualmente, o número de participantes varia de grupo para grupo. Algumas cidades, como Oliveira, têm a figura de um boi como o enunciador da festa. Algumas pessoas representam reis, príncipes, rainhas, festeiros, guias, pajens, capitães de espada, coronel, alferes da Bandeira, dançantes, embaixadores, porta-bandeira e outros personagens que desfilam pelas principais ruas das cidades louvando santos, que mudam conforme a localidade. As coreografias estão ligadas às músicas e a todo o ritual. Entre as principais, destacam-se a marcha caminhada com o grupo ordenado.
Devido a sua importância histórica e cultural, em agosto de 2024, os congados mineiros passaram a ser reconhecidos como Patrimônio Cultural de Minas Gerais. O resultado é fruto do trabalho do Conselho Estadual do Patrimônio Cultural (Conep) para a preservação e promoção dessas tradições populares. O evento é um dos mais importantes símbolos da cultura afro-brasileira. Mesclando elementos da cultura africana ao catolicismo, ele representa parte da grande contribuição histórica dos negros no Brasil. Os cortejos simbolizam a recriação do sagrado: percorrer caminhos trilhados pelos ancestrais é reviver a força e participar do mistério dos que já se foram.
Os cidadãos de Oliveira se orgulham de seu congado, e de seu Boi do Rosário, que não apenas desfila, como em outros locais, mas é ativo, integrando a festa à população. João Paulo Siqueira esclarece que, mesmo popularmente sendo conhecido por “atacar”, o boi não possui um alvo. “Quando fica muita gente, o boi corre, para esparramar o povo e ter espaço, e às vezes dá uma pancada”.
O oliveirense Marcos Menezes, estudante de Biologia em Belo Horizonte, volta todos os anos para Oliveira, a fim de correr do boi com os amigos Bianca e Moisés. “É uma celebração tão bonita e rica em história, passando por várias e várias gerações, e assim, consegue se manter influente até os dias de hoje”, diz.
A figura mitológica do boi era vista por negros escravizados e indígenas como companheiro de trabalho, símbolo de força e resistência. É por isso que toda essa encenação gira em torno dele. A figura sagrada abre os caminhos para o começo do congado, ou mostra o caminho de volta para casa, como no caso dos amigos que sempre retomam suas origens e a amizade por causa do boi.